Olha a onça!

Eu e Maria estamos a caminho da nossa corrida no deserto, mais precisamente dentro do avião que nos leva de Brasília à Porto Alegre. Ao meu lado, um senhor cansado, vestindo terno, dorme desconfortavelmente no minúsculo assento. Ele ocupa a poltrona dele e metade da minha. Às vezes ele acorda e tosse de uma maneira estranha, parecendo um leão esbaforido. Percebo que comecei mal, mas torço para que as coisas melhorem nos próximos vôos: POA - Santiago - Calama. Ainda bem que do outro lado vejo Maria dormindo como um anjo, nas nuvens. Viro pra ela e começo a buscar lembranças na minha memória.

O pensamento que me vem em mente é sobre os nossos  treinos. Será que treinamos o suficiente? Estamos preparados? Esta insegurança deve ser normal, penso eu, tentando me motivar. Até atleta de elite deve sentir o mesmo quando um grande desafio se apresenta a sua frente. A verdade é que treinamos duro e como se fosse uma espécie de mantra repetíamos durante as intermináveis subidas e geladas chuvas: "quem não sofre nos treinos, sofre na corrida".

Em outubro do ano passado procuramos o Lo-Rã. Lo-rã é o apelido do Laurent. Ele é francês, tem uma família linda, e coordena um grupo de corridas em Brasília. Ele corre muito. Não conheço muito a história dele mas sei que ele já competiu como gente grande. A Maria já havia treinado com ele antes e marcamos um encontro. Falamos sobre o desafio no Atacama e na hora ele topou nos treinar. Os treinos seriam as terças e quintas as 6h da manhã sempre numa pista e aos domingos pela manhã em alguma trilha ou corrida. Treinaríamos normalmente com o restante do grupo. E assim fizemos desde outubro com sol ou chuva ao lado dos nossos amigos da equipe Lo-rã. No fim de dezembro a equipe teve um recesso e na nossa planilha constavam treinos longos em trilha aos fins de semana. Estávamos no momento mais importante dos treinos.

O que segue abaixo é um relato de um desses treinos, onde eu e Maria resolvemos ir sozinhos numa trilha.

Domingão, tudo pronto pra trilha. Acerto o meu relógio. Dou uma ultima conferida no percurso e vamos pro mato, apenas eu e Maria.  Saímos as 7h30 de casa e por volta das 8h estávamos no ponto inicial da Trilha do Alto Delírio, na Pedreira Contagem. O nome da trilha por si só gera uma curiosidade. Por que "alto delírio"? (mais tarde descobriríamos que o nome fazia jus ao percurso). Nosso intuito era percorrer a trilha completa (35 km) correndo sem parar ou pelo menos uns 30 km.

Iniciamos bem os primeiros 5 km de asfalto num ritmo agradável e mais lento, para aquecer. Em seguida pegamos uma estrada de terra. Quando coloco o pé na trilha (no barro, no mato) instantaneamente meus pensamentos me levam a minha juventude. Me lembro dos caminhos que costumava passar para ir aos rios no interior de Goiás. É uma ótima sensação. Apertamos um pouco o ritmo, aproveitando uma grande descida até  chegarmos à ponte do Rio Sonhem, afluente do Rio Maranhão, completando 9 km. Daí em diante começamos uma subida daquelas de fazer chorar, delirar. Lembra do nome da trilha? Pois é, uma das piores subidas que já enfrentei. Seguimos numa passada curta, quase caminhando. Escutamos um barulho de motos se aproximando. Eram dois motoqueiros que nos cumprimentaram e seguiram em frente nos fazendo comer poeira. Conseguimos vencer o morro apesar da dificuldade. Quando tudo parecia melhorar, percebemos que havíamos errado uma das entradas e tivemos que correr 3,5 km a mais. Culpa minha. Mesmo assim, não desanimamos. A trilha estava muito boa, com subidas e descidas fortes. Comecei a admirar o local. Os morros são verdes com grandes fendas. Para qualquer lugar que se olhe não há vestígios de civilização. Nem parece que estamos a poucos minutos de Brasília.

Lá pelo km 17, perto da metade da trilha, escutamos os barulhos das motos novamente. Desta vez vindo na nossa direção. O primeiro motoqueiro passou nos cumprimentando e o segundo parou para falar conosco.
- Vocês estão sozinhos na trilha?
Fiquei com receio mas respondi: - Sim, estamos sós.
- Olha, a trilha ali pra frente está perigosa. Vimos umas fezes de onça.
Olhei para a Maria, notei que ela arregalou os olhos e fez uma expressão de medo com a notícia que acabávamos de receber. Eu não devo ter reagido diferente. Ambos gelamos. Antes que pudéssemos falar algo, nosso amigo acelerou a moto e saiu em disparada. Pensei comigo, como alguém dá uma noticia dessas e deixa dois filés gigantes de onça pra trás.? Foi assim que passei a me sentir depois daquela hora. Em 10 segundos resolvemos que era melhor voltar. Demos meia volta e depois disso a trilha mudou totalmente. Senti pela primeira vez que não é nada bom correr com medo. Alias, nada é bom de se fazer com medo. Maria começou a imprimir um ritmo mais forte. Depois ela me confessou que era de medo mesmo e eu a segui. Lá pelos 25 km comecei a sentir minhas panturrilhas queimarem. Não era muito comum sentir aquilo e a dor chegou a tal ponto que simplesmente não conseguia mais correr. Sofri, sofri e pela primeira vez, quebrei. Tentei fazer alongamentos e nada. Quando pensava que ainda restavam 10 km, não conseguia correr e existia a hipótese de uma onça aparecer, um mar de emoções começou a me invadir, e todas elas me levavam ao desespero. Sabe quando você pensa em sentar no meio fio e chorar? Foi isso que pensei, mas nem meio fio tinha naquele lugar. Resolvi seguir adiante e suprimir mentalmente o que estava sentindo. Maria tentava me animar contando piada, falando besteiras mais nada adiantou. Eu estava um caco. Por fim, conseguimos chegar ao asfalto e fui intercalando trotes e caminhadas até o fim. Completamos 5 h de atividade e aprendemos algumas coisas.

1. Nunca vá sozinho pra trilha.
2. Se for, leve consigo pelo menos um canivete ou spray de pimenta. Não sei se em um embate com uma onça adiantará de alguma coisa, mas certamente será melhor do que jogar um par de tênis ou uma camelback na cara da onça, que no nosso caso seriam as únicas alternativas.
3. Se for, avise as pessoas onde estará e determine um tempo para que eles comecem a te procurar.

Alguns dias depois foi divulgada notícia no Correio Brazilienze sobre um filhote de onça que foi encontrado em Planaltina, perto da região que estávamos. Ou seja, a mãe, o pai, o avô desse filhotinho estão por aí. Qualquer coisa, cebo nas canelas.

Quando chegarmos a San Pedro dou notícias.

"Se correr o bicho pega e se ficar o bicho come".

2 comentários

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gbsantos
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28 de janeiro de 2012 às 23:25 exclui Este comentário foi removido pelo autor.
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gbsantos
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28 de janeiro de 2012 às 23:28 exclui

É rapaz, eu já senti este mesmo medo que você sentiu, em uma trilha de Mountain Bike a caminho de Pirenópolis, atravessei um rio raso e haviam varias pegadas grandes parecida com a de cachorro, só que muito grande, estavam frescas... Pedalar com medo não foi muito legal, os músculos se contraem e a agente perde o foco. Sorte aí !!!

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