Maratona da Antártica (parte 4)

Chegou o grande dia. 55 atletas representando 22 países iriam correr a tão desejada maratona do gelo. Eu e Maria éramos os únicos brasileiros neste ano. O percurso da prova foi dividido em duas voltas de 21,1 km com quatro pontos de controle (checkpoints) ao longo do percurso. Resolvemos deixar roupas secas no checkpoint principal (largada/chegada) e suplementos nos demais pontos.

Largamos com três camadas de roupas, tênis de trilha, luvas sem divisão nos dedos (mittens), balaclavas, gorros, protetores para o pescoço (buffs), polainas de trilhas (gaiters) e óculos de ski (googles). Não usei relógio para evitar qualquer pressão em relação ao tempo. Não estava ali para fazer o melhor tempo da minha vida, muito pelo contrário.

Pontualmente, às 10h foi dada a largada da prova. Eu e Maria começamos juntos e nos três primeiros quilômetros constatamos que o desafio seria enorme. O clima não ajudava. A temperatura girava na casa dos 25°C negativos. Começou a nevar, diminuindo nossa visibilidade.

Os googles começaram a embaçar. Em questão de poucos minutos havia apenas um pequeno espaço embaixo dos óculos para enxergar. Minha única referência eram as bandeiras azuis que indicavam o percurso. Para olhar adiante, eu precisava usar essa fresta, posicionando minha cabeça para trás. Posição nada agradável.

Correr na neve é uma tarefa difícil. Nunca sabemos se o solo está confiável. Quando achávamos que o terreno estava firme afundávamos o pé na neve fofa e o contrário também. Foram muitas passadas em falso, causando pequenas torções no tornozelo. Muito desequilíbrio e tropeços. Como se diz popularmente, "catei muita mamona". Imagina correr sem enxergar o próximo passo.
A cada ponto de apoio, além de me alimentar, tive que limpar os googles. Perdi muito tempo nisso. Usei até álcool e nada. Comecei a odiar aqueles óculos. Pensei: "ruim com eles, pior sem eles". Maria que vinha logo atrás também sofria com os mesmos problemas.

Quando completei a primeira volta, olhei o cronômetro oficial da prova. Tinham se passado 3h 5min 4s de prova. Até aquela hora não fazia a menor ideia do meu ritmo. Foi então que cai na real. Onde fui me meter? Juro que tinha me esforçado para fazer a meia maratona em 2h (hahaha). Será que não vi direito. Olhei de novo e lá estava ele contando sem parar, 3h 5min 10s 11s 12s...

Resolvi parar no checkpoint principal, metade da prova, para trocar minhas roupas molhadas, evitando que meu corpo congelasse. Quando troquei de roupa, me senti melhor. Resolvi dar um jeito nos meus googles. Notei que ele estava congelado e para piorar a espuma dele estava descolando da armação. Tinha duas opções, continuar com ele daquele jeito ou usar os óculos normais. O grande problema dos óculos normais era que com a balaclava eles embaçavam ainda mais. Correr tanto tempo sem a balaclava não parecia ser uma ideia interessante. Limpei os googles mais uma vez, me alimentei e voltei para a prova.

Maria não parou neste checkpoint, dispensando novas roupas. Pelo jeito, ela estava confortável e com mais resistência ao frio. Deste ponto em diante, não a vi mais na prova. Enquanto eu me alimentava, o Francisco, brasileiro e um dos cinegrafistas da prova, entrou na tenda principal e me contou que Maria havia roubado (pego emprestado sem avisar) o googles dele e seguiu em frente. Ao final, Maria me contou que ao ver o Chico com o googles preso na cabeça não pensou duas vez. O coitado não teve tempo nem de dizer que iria precisar. Assim, ela resolveu o problema. Fácil.

Na segunda volta, sofri mais, naturalmente. Não bastava o frio, a neve, a falta de visão. Uma dor na lateral externa do meu joelho esquerdo começou a me perturbar. Fiz alguns alongamentos e continuei, "catando mamona". Fui dedicando cada placa indicativa das milhas percorridas para um integrante da família. Comecei por Maria, meu pai, minha mãe, minhas irmãs, sobrinhos, meus sogros, Naná. Quando acabou a família, passei para os amigos, Lorã, Sérgio, Alan, Gilvan, Wesley (Japonês dos infernos), Iran, Ismael etc. Comecei a pensar no arroz e feijão que só minha mãe sabe fazer. Sabia que ao terminar estaria a milhares de km daquele sabor delicioso. Fiz a segunda volta praticamente sozinho e pensar em coisas aleatórias foi confortando a minha mente.

Maria completou a prova com a norueguesa, Lise Grønskar. As duas se ajudaram no final da prova e foram incentivando uma a outra. Maria não deixou que Lise desistisse em determinado ponto da prova, reduziu o ritmo para que elas fossem juntas. Em outro trecho, Maria parou em um dos pontos para se hidratar e Lise que havia seguido sozinha voltou de snowmobile dirigido por um dos staffs para seguir ao lado de Maria até o fim. O que dizer dessa atitude?

Terminei a prova muito cansado, como tinha que ser, mas com um sentimento indescritível de dever cumprido. Foi a prova mais desgastante da qual participei do ponto físico e mental. Tenho a sensação de que nunca me esforçarei tanto para realizar outra maratona. Posso estar enganado, mas correr sem enxergar, no gelo, a -25°C, por mais de 6h, não é uma experiência que gostaria de repetir. Nada que um bom par de googles não me faça mudar de ideia. rs

Acreditamos ter escolhido muito bem as roupas e acessórios, pois conseguimos correr em condições tão extremas apesar das diversidades. Esperamos que este relato possa ajudar e inspirar outros, que assim como nós, procuram uma vida cheia de realizações verdadeiras e significativas. Daquelas que dão arrepios só de lembrar e contar para os amigos.
Finalmente, eu e Maria, completamos nosso objetivo de completar maratonas nos sete continentes. Vale ressaltar que 5 anos atrás eu mal conseguia dar um pique de 100 metros, portanto, basta querer. Se tiver interesse, depois veja como tudo começou. Segundo a organização, somos o primeiro casal brasileiro a conseguir tal proeza. Nos orgulhamos muito deste feito. Agradecemos imensamente a Adidas, a Equipe Lo-rã, o Antônio Colucci e o Tadeu Guglielmo, pela parceria e amizade. Agradecemos nossas famílias que se preocuparam e rezaram por nós. Mãe, pode dar um descanso para São José.



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